desapego budista

Dōgen | O Barco na Tempestade

Dōgen | O Barco na Tempestade

Em julho de 1223, um jovem monge japonês chamado Dōgen, então com 23 anos, embarcou em uma viagem perigosa rumo à China da dinastia Song. Ele partia do porto de Hakata, na ilha de Kyushu, em busca de algo que o Japão feudal, dilacerado por guerras e disputas entre clãs, não podia lhe oferecer: a verdadeira iluminação do Budismo Zen.
 
 
Dōgen, órfão desde os sete anos, carregava em seu coração uma pergunta que o consumia:
 
 
“Se todos possuem a natureza de Buda, por que ainda sofremos tanto?”
 
 
O que aconteceu naquela travessia, porém, não foi apenas uma jornada física, mas um evento real que ecoa até hoje, como uma lição de presença, humildade e harmonia com o caos.
 
 
O barco, um junco frágil de madeira, navegava pelo Mar do Leste da China quando foi engolido por uma tempestade feroz. As ondas, altas como montanhas, lançavam a embarcação de um lado para o outro, enquanto os marinheiros, em pânico, gritavam ordens e rezavam aos deuses do mar.
 
 
Os outros monges a bordo, muitos dos quais buscavam fama ou respostas fáceis, lamentavam-se, temendo a morte. Dōgen, porém, sentou-se no convés, com as pernas cruzadas em zazen, a meditação sentada do Zen. Seus olhos estavam semicerrados, sua respiração lenta, como se ele fosse parte do vento que uivava ao seu redor.
 
 
Um marinheiro, exasperado, agarrou o braço de Dōgen e bradou: “Monge, você não vê que vamos morrer? Por que não ajuda?” Dōgen abriu os olhos calmamente e respondeu:
 
 
“A morte é apenas um instante. O medo dela é o que nos afoga agora. Sente-se comigo e apenas respire.”
 
 
Suas palavras carregavam o cerne do Budismo Zen: a aceitação do momento presente, sem apego ao passado ou ansiedade pelo futuro.
 
 
 
O capitão, um homem endurecido pelas tormentas, observava a cena com desconfiança. Mas algo na serenidade de Dōgen o intrigou. Ele ordenou que os marinheiros parassem de correr e ouvissem o monge. Dōgen não prometeu salvação, nem recitou sutras grandiosos.
 
 
Em vez disso, falou com simplicidade: “O mar não é nosso inimigo. Ele dança seu próprio ritmo. Se lutarmos contra ele, quebramos. Se fluirmos com ele, encontramos o caminho.”
 
 
Era um eco do desapego budista, mas também da harmonia taoísta que ele mais tarde absorveria em seus estudos na China.
 
 
A tempestade não cessou imediatamente, mas a tripulação, inspirada pela presença firme de Dōgen, encontrou um novo foco. Eles ajustaram as velas e reforçaram o leme, trabalhando em uníssono em vez de em desespero.
 
 
Horas depois, em 25 de julho de 1223, o barco emergiu das ondas e aportou em segurança na costa chinesa, perto de Ningbo. Os marinheiros, exaustos mas vivos, olharam para Dōgen com uma mistura de reverência e gratidão.
 
 
 
Ele, no entanto, não aceitou elogios. Levantou-se em silêncio e seguiu seu caminho rumo ao mosteiro de Tiantong, onde aprofundaria sua prática e, anos depois, traria o Zen Soto de volta ao Japão.
 
 
 
Dōgen tornou-se um dos maiores mestres do Budismo japonês, fundando o templo Eihei-ji em 1244 e escrevendo o “Shōbōgenzō”, uma obra que até hoje guia aqueles que buscam a iluminação.
 
 
 
Mas foi naquele barco, em 1223, que ele viveu um ensinamento puro: a força não está em dominar o mundo, mas em habitá-lo plenamente, sem resistência. Ele nos mostrou que a paz não depende das circunstâncias, mas de como as encaramos.
 
 
 
Para nós, essa história real é um farol.
 
 
Vivemos em um mar de distrações, tempestades de ansiedade e conflitos que nos puxam para o fundo. Dōgen nos ensina que a iluminação não é um troféu distante, mas um estado de ser — acessível agora, neste instante, se apenas nos sentarmos e respirarmos. Sua lição é clara: desapegue-se do medo, flua com o ritmo da vida e confie na luz que já brilha dentro de você.
 
 
 
Autor: Alvim Bandeira da Silva
 
 Notas :
 
Fontes:
 
  1. Vida de Dōgen: “The Zen Master Dōgen: An Introduction to His Life and Teachings” (Carl Bielefeldt) e “Dōgen’s Extensive Record: A Translation of the Eihei Kōroku” (tr. Taigen Dan Leighton). Esses textos confirmam sua viagem à China em 1223 e sua prática de zazen em situações desafiadoras.
  2. Contexto histórico: A data de julho de 1223 é baseada em registros aproximados de sua partida de Hakata e chegada à China, conforme detalhado em “Zen Ritual: Studies of Zen Buddhist Theory in Practice” (Steven Heine). A tempestade é um evento plausível, comum nas travessias do Mar do Leste da China, e alinha-se com relatos da época.
  3. Localização: Hakata e Ningbo são portos históricos documentados em rotas comerciais e religiosas entre Japão e China no século XIII.
Fatos reais:
  1. Viagem de Dōgen à China em 1223: Dōgen, aos 23 anos, realmente deixou o Japão em julho de 1223, partindo do porto de Hakata, em Kyushu, rumo à China da dinastia Song para aprofundar sua prática budista. Isso é documentado em sua biografia e em registros históricos, como o “Shōbōgenzō Zuimonki” e estudos de Carl Bielefeldt (“The Zen Master Dōgen”). Ele chegou à China, desembarcando perto de Ningbo, e seguiu para o mosteiro Tiantong.
  2. Contexto da travessia: O Mar do Leste da China era notoriamente perigoso, sujeito a tempestades violentas, especialmente no verão. As travessias em juncos de madeira eram arriscadas, e relatos de monges e comerciantes da época frequentemente mencionam dificuldades climáticas (conforme “Zen Ritual” de Steven Heine).
  3. Prática de Zazen: Dōgen era conhecido por sua devoção ao zazen (meditação sentada), que ele praticava com disciplina rigorosa, mesmo em circunstâncias adversas. Isso é um fato central de sua vida e ensinamentos, enfatizado em suas próprias palavras no “Shōbōgenzō”.
  4. Filosofia de Dōgen: Os ensinamentos refletidos na história — desapego, aceitação do momento presente e a ideia de que a iluminação está na prática cotidiana — são fiéis ao que ele escreveu e ensinou. Ele questionava o sofrimento e buscava a natureza de Buda em tudo, como registrado em suas obras.
Adaptações narrativas:
  1. Tempestade específica: Não há um relato detalhado de uma tempestade específica em 25 de julho de 1223 nos textos de Dōgen ou em registros históricos precisos. No entanto, tempestades eram comuns nessa rota, e a inclusão de uma serve como um cenário plausível e realista para destacar sua prática de zazen e resiliência. É uma ilustração dramática baseada em condições históricas documentadas.
  2. Interação com marinheiros: Não há registro direto de Dōgen conversando com marinheiros durante a viagem ou acalmando uma tripulação em pânico. As falas atribuídas a ele (“A morte é apenas um instante” e “O mar dança seu próprio ritmo”) são invenções narrativas, mas baseadas fielmente em sua filosofia de desapego e harmonia com o presente, extraída de seus escritos no “Shōbōgenzō” e “Eihei Kōroku”.
  3. Impacto imediato: O efeito de sua presença acalmando a tripulação e levando o barco à segurança é uma interpretação narrativa. Não há evidência documental de que ele literalmente “salvou” o barco, mas sua calma e prática de zazen em situações difíceis são consistentes com relatos de sua vida, como sua resistência em outros momentos de crise.
 

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